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A Incrível História do Futebol Feminino Brasileiro





FREDERICO MORIARTY – O circo anunciava para às 8 e 3/4 da noite da quinta-feira, 27 de julho de 1933, a incrível partida de futebol feminino, logo após a Mulher Barbada. No picadeiro instalado na capital paranaense iriam se enfrentar as meninas do Curythyba contra as do Athletico, Doutro lado do Atlântico, no mesmo ano, as mulheres teutônicas passavam a ter uma função: procriar feito bicho para gerar soldados arianos para o Führer. Nunca foi fácil ser mulher.
Em pleno Estado Novo, preocupado com a preservação da moral e dos bons costumes, além do papel da mulher na sociedade, nosso ditador de então, Getúlio Dornelles Vargas, aprova o Decreto 3199 de 1941. No vergonhoso artigo 54 líamos isso:
“Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país.”




Futebol? Jamais. Era coisa de machos barbados. Mulheres deveriam se ater à maternidade. Desporto para mulheres era cuidar do pai, do marido, do irmão e dos filhos (muitos de preferência).
O pai dos pobres, Getúlio, que dera o direito de voto às mulheres 7 anos antes do decreto, não as queria praticando bola. Contraditório? Jamais. Getúlio visava os futuros votos das ligas femininas de trabalhadoras, nunca que elas vestisse a camisa de um Corinthians, de um Vasco da Gama ou de um Palestra Itália ( que o ditador obrigou por um outro decreto de 1942 a mudar o nome para Palmeiras). Mulheres teriam o voto a CLT para aguentar a dupla ou às vezes tripla jornada de trabalho. Aos domingos os homens jogavam bola e depois iam aos matches. Às mulheres cabiam o almoço, o jantar, as louças, o cuidar dos filhos e a roupa passada.
Em 1965, a Ditadura Militar acrescenta após a palavra “desporto incompatível” o substantivo futebol . Somente em 1979, tal absurdo foi revogado de nosso arcabouço jurídico (mais para calabouço mesmo). Às mulheres, agora, era permitido calçar as chuteiras. Foram-lhes dada anistia ampla, geral e irrestrita.
Das areias de Copacabana, num clube de bairro existente desde 1932, o dirigente, técnico, atleta, Euryco Lira, monta o primeiro time de futebol feminino da nova era: nascia o Esporte Clube Radar.
Time não, uma máquina de vitórias e títulos. O Radar conquistou 7 copas do Brasil entre 1983 e 1989, seis campeonatos cariocas e outros seis títulos sul-americanos. O time azul e dourado lembrava demais a hegemonia do Santos nos anos 60. Inclusive porque, cansado de vencer tudo por aqui, excursionaram pela Europa e Ásia, entre 1987 e 1989. Disputaram 75 partidas, venceram 65 e perderam apenas duas. Não há nada na história do futebol feminino como o E.C. Radar, e provavelmente nove em cada dez brasileiros jamais ouviram falar dele.



Percebendo a expansão do futebol feminino na década de 80, a FIFA organiza em junho de 1988, um Torneio Mundial Experimental, na China. O Brasil fez uma excelente campanha, terminando em terceiro lugar (derrotado apenas pela campeã Noruega). A base da seleção? O fantástico time do Radar. O salário das estrelas: 1 salário mínimo! Sendo que a maioria recebia apenas ajuda de custo – literalmente, um sanduba e uma taubaína.



Nossas representantes foram: Liça (Radar), Flordelis (Brahma/BA), Marcinha (Juventus), Elane, Marisa, Fanta ( as 3 do Radar), Lúcia (Trani/Ita), Roseli (Juventus), Pelezinha (Radar), Sissi (Bahia), Michael Jackson (Radar), Cebola (Vila Dimas/ DF), Fia (Juventus), Sandra, Russa (Radar ambas). Meg (Radar). Técnico: João Souza Varela.
O absurdo da falta de dados sobre o futebol feminino é tão grande, que em nenhum sítio pesquisado, na CBF ou nos jornais brasileiros há o nome de todas as jogadoras, muito menos a identificação das mesmas. Retirei os nomes de scalts de um sítio inglês.
Curiosidade do torneio: Romualdo Arppi Filho, que havia apitado 2 anos antes a vitória da Argentina na final sobre a Alemanha na Copa de 86, foi também o árbitro da decisão feminina entre Noruega e Suécia em 1988.
Três atletas foram destaques nessa primeira seleção ( boa parte das citadas acabou disputando a 1ª Copa do Mundo de Futebol Feminino na mesma China em 1991): Cebola, Roseli e nossa maior craque até o aparecimento de Marta: a baiana Sissi, nome e jogo de imperatriz.
Entre 1991 e esta edição de 2019, a FIFA organizou oito campeonatos mundiais, mais o experimental de 1988. Os Estados Unidos ganharam 3 títulos, Noruega e Alemanha dois campeonatos, as 3 seleções foram vice campeãs uma vez cada Estas são as maiores vencedoras. O Brasil participou de todas as edições, conquistou um vice-campeonato em 1999 e dois terceiros lugares em 1988 e 2007.
Rendimento louvável se lembrarmos que somente nove países conseguiram a proeza de terminar entre os três primeiros lugares nas nove edições. Nas Olimpíadas tivemos seis edições até agora. Os Estados Unidos ganharam quatro medalhas de ouro. Nós somos o único país com duas medalhas de prata.
Marta, eleita a maior jogadora do mundo por seis vezes, foi escolhida também como melhor jogadora da Copa de 2007, e é a maior artilheira de todas as Copas com 17 gols. Em Copas Américas, temos sete títulos de oito campeonatos disputados. Não temos do que nos envergonhar, pelo contrário. Mesmo sem organização, dinheiro, apoio, conquistamos muito.



Aponto, a seguir, algumas sugestões para o crescimento do nosso futebol feminino:
1) Temos um Campeonato Brasileiro organizado há apenas sete anos. No atual modelo com divisão A e B, são somente 3 anos de disputas. Todos os países que praticam um grande futebol feminino tem ligas profissionais muito organizadas, estruturadas, com público fiel e visibilidade (vide os casos da França, Alemanha e a super-potência Estados Unidos). É necessário, portanto fortalecer nossa liga.




2) A CBF deveria cobrar mais dos clubes masculinos. Dos grandes de futebol brasileiro, somente Corinthians, Santos, Flamengo e Internacional têm clubes femininos fortes. O multi-campeão Palmeiras (coincidentemente amigão do Bolsonaro), só este ano montou um time de futebol feminino e disputa a segunda divisão. Vergonhoso para o time mais rico do Brasil.
3) O técnico escolhido para dirigir a seleção era fraco (o anterior, Renê Simões, também). Ao que tudo indica não acompanha o Campeonato Brasileiro. Nos últimos dois anos, Corinthians e Santos vem liderando os campeonatos e as estatísticas. Millene e Gabi, do alvinegro paulista, e Gláucia, do Peixe, têm média de gols acima de um por jogo nos últimos dois campeonatos.
O Flamengo, o Internacional e o Avaí Kindermann tem excelentes jogadoras. O Rio Preto, campeão em 2015 e vice em 2016 e 2018, tem tradição na revelação de atletas. Das 23 convocadas por Vadão, que nos representaram no Mundial da França em 2019, apenas duas vieram do campeonato citado: a fraca goleira Bárbara, do Avaí, e a zagueira Mônica, do Corinthians.
Várias atletas que estiveram na França estavam machucadas ou claramente fora de forma. Formiga tem uma história, mas não tem pernas mais para acompanhar as europeias. Não é à toa que em três partidas ela tomou três cartões amarelos. Sempre chegava atrasada.




4) Precisamos parar de comparar as atletas. Debinha é Debinha, não é o Cebolinha de saias. Marta não é nossa Pelé. Até porque Marta tem consciência política e caráter. Ficou evidente que sua luta não é apenas alçar o futebol feminino à condição de esporte respeitado. Teve várias posturas de empoderamento feminino, recusou patrocínios de valores inferiores aos dos homens, criticou severamente as posturas homofóbicas e machistas do nosso mandatário. Mais uma vez, temos a certeza de que as mulheres são superiores aos homens.
5) A comparação sem fundamento do rendimento atlético é mais um problema a ser resolvido. Os jogadores masculinos correm entre nove e onze quilômetros por partida. Fisicamente são muito fortes e preparados. As mulheres desta Copa mostraram que não estão muito longe: média de 7 a 9 km. Na partida que nos eliminou, contra a França, várias atletas passaram dos 13km!!!
“Mas elas são mais lentas que os homens”, apontam os machistas de sempre. Esquecem que a média dos profissionais nos anos 80 era de seis a oito quilômetros por partida, ou seja, as mulheres de hoje correm quase dois quilômetros a mais dos que os homens de três décadas atrás.
6) O jogo feminino é diferente. Os comentaristas e torcedores deveriam perceber isso. As jogadas coletivas e infiltrações são em maior número no jogo das mulheres. A pontaria delas é muito maior também. Quantas bolas você viu sair pra fora da arquibancada? Quantos gols absurdos vocês viram as mulheres perderem? Mesmo a arbitragem é de muito melhor nível. Os árbitros masculinos são um horror, os campeonatos sofrem com a péssima qualidade dos assopradores de apito. Observem que o mesmo não acontece com as árbitras. Quantas partidas vocês assistiram com interferência clara da arbitragem nessa Copa da França 2019?
7) Precisamos nos organizar melhor como esporte. É necessário ter dirigentes mais parecidos com Euryco Lira. Nossas técnicas e técnicos precisam estudar táticas, sistemas de jogo. Vejam o caso da técnica francesa, Corinne Diacre: foi uma boa jogadora, disputou Copa do Mundo e 124 partidas pela seleção francesa. Após o fim da carreira como atleta fez curso de educação física e escola para técnicas . Trabalhou por 6 anos como assistente técnica na seleção do seu país. Ganhou a licença da Federação Francesa em 2015 e quebrou tabus, pois por 3 anos ela foi a primeira mulher a treinar uma equipe de futebol masculino ( foi escolhida a melhor treinadora da League 2 em 2017) . Conhece o esporte em todas as suas nuances. Vadão – o treinador brasileiro -, acreditava que a Jamaica era um país africano. Nossos preparadores físicos precisam aprender a expandir os limites físicos de nossas atletas.
8) Precisamos de um Fiori Gigliotti, um Osmar Santos, um Luciano do Valle ou de um Rômulo Mendonça (apesar de não gostar muito do estilo do narrador da NBA na ESPN). Gigliotti trouxe o teatro e a força cênica para os gramados. Osmar e seus “xirolirolá” deixou as transmissões mais alegres.
Luciano narrava o vôlei como se fosse a vida dele nos anos 80. Esforçava-se também para popularizar o esporte, então patinho feio no Brasil. Luciano nos fez conhecer a NBA, a F-Indy, construiu até um Cassius Clay tropical, nosso simpático Maguila.



Rômulo Mendonça ama o basquete americano, torce, acompanha, conhece, inventa palavras, jargões, como todos os grandes narradores da história. E a narrativa, na maioria das vezes , é mais importante do que o jogo em si. Quem já teve um radinho de pilha sabe o que estou falando.
9) Precisamos investir na base, na formação das meninas que serão as futuras jogadoras. Precisamos quebrar as mentes fechadas que ainda olham para o futebol feminino como o ditador Getúlio olhava. Enfim, sugestões que não são nada mais do que o óbvio.
O importante mesmo é entender que o papel da mulher na sociedade é de tudo aquilo que ela quiser e lutar pra conquistar. Cabe aos homens aplaudir, reconhecer os séculos de agressão, desrespeito, violência, menosprezo e submissão. Mais: precisamos pedir desculpas pelo que fomos, o que somos e o que ainda seremos em relação às mulheres. Afinal, o grande problema do futebol feminino sempre será o homem.




Reportagem do Jornal da USP

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