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Mestre Didi e Nelson Cavaquinho: gênios da raça




FREDERICO MORIARTY – Nelson Antonio da Silva e Waldir Pereira foram dois cariocas que fizeram história encontrando formas novas de exercer a sua arte. Negros e pobres, construíram uma carreira sólida, entretanto, são personagens esquecidos pelo tempo. Num país racista e excludente como o Brasil não poderia ser diferente.
O primeiro, ao tocar o violão e cavaquinho com apenas dois dedos produziu um timbre único para o samba. O segundo, ao bater com três dedos na bola inscreveu uma nova trajetória no futebol. Nelson Cavaquinho e Didi, o Príncipe Etíope, transformaram o samba e o futebol com estilos próprios e criativos. Nossos maiores símbolos populares derrotando as tradições conservadoras e a ignorância no maior país negro do mundo.


O craque Didi: a alegria do futebol bem jogado (Fotos: Arquivo)

Didi, Mr. Football
Didi iniciou a carreira profissional no Rio de Janeiro. Fez história no Fluminense, no Botafogo e na seleção brasileira. Esguio e alto para a época, Didi fez quase 200 gols na carreira – entre eles, o primeiro gol na história do estádio Mario Filho, vulgo Maracanã -, e ganhou dezenas de títulos importantes, culminando com um bicampeonato mundial pela seleção brasileira em 1958 e 1962.
Armador talentoso, sempre esteve na lista dos 100 maiores jogadores da nossa história futebolística. Além de jogador refinado, Didi era um estudioso do futebol. Quando encerrou a carreira, tornou-se técnico vitorioso. Ganhou diversos títulos dirigindo times e seleções em três países diferentes: Brasil, Turquia e Peru.
Neste último, virou lenda: levou a seleção peruana à sua segunda participação em Copas do Mundo, a de 1970, conseguindo a melhor posição do país até hoje nos torneios da Fifa. Era o nome certo para a seleção brasileira de 1978, mas não era nem branco, nem militar, nem grosso de bola cheio de teorias como Cláudio Coutinho.


Didi dirigindo e ganhando títulos num dos maiores clubes do mundo, o River Plateda Argentina (Capa do El Gráfico)

Nelson do violão e cavaquinho
Nelson Cavaquinho era filho dum policial no Rio de Janeiro. Foi seu pai que lhe arrumou um emprego na cavalaria que fazia a ronda noturna da polícia carioca. Andavam pelos bairros periféricos do Rio e nas favelas em crescimento. Em 1932, no bairro da Mangueira, Nelson conheceu Carlos Cachaça e Cartola.
Passou a frequentar o chão da escola da Mangueira, o bar ZiCartola (nome do famoso casal de sambistas, Dona Zica e Cartola) e a Birosca da Dona Efigênia. Birosca eram os bares da periferia com um pouco de tudo: meio mercearia, meio armazém e muita cachaça. Tudo precário e desarrumado, a sujeira aparente não escondia a riqueza cultural das biroscas.
Foi nela que Nelson Cavaquinho compôs seus primeiros sambas. Chamava atenção o jeito único de tocar: apenas com os dois dedos – o polegar e o indicador -, que produziam um ritmo diferenciado, meio sincopado, ou “a galope” em homenagem ao sambista que também era da cavalaria policial.
Assim como o craque Didi, Nelson Cavaquinho sofreu rejeição, tornou-se um dos sambistas mais famosos do país, mas jamais pertenceu ao grupo de compositores oficiais da Estação Primeira de Mangueira. Somente 25 anos após sua morte, a mais tradicional escola de samba carioca finalmente o homenageou com um samba enredo em 2011.


O som transgressor do Morro: da esquerda para direita, Nelson Cavaquinho, Cartola e Dona Zica ao fundo

De Folhas Secas
Didi tem uma explicação maravilhosa para o lance que o eternizou no futebol. Corria o ano de 1956 e o armador sofria com uma grave contusão nos tendões que não melhorava. Desesperado, Didi pensou em abandonar precocemente as chuteiras. Num dos treinos ao chutar de lado percebeu que a canela não doía.
Didi testou uma, duas, três vezes e o resultado era o mesmo: quando batia na bola com os três dedos apenas a dor sumia; bastava tocar na bola de maneira tradicional e o pé explodia em ardência. Didi começou a treinar insistentemente de três dedos.
Ele percebeu que ao lançar uma bola desse modo, esta subia bastante e repentinamente caía em linha reta. A genialidade do mestre Didi o inspirou a treinar faltas com o novo toque. Didi metia a bica na pelota, esta descrevia uma parábola, o goleiro olhava para as estrelas e esperava a bola voar pelo espaço. Entretanto, o couro descia leve, suave e desadvertidamente sobre o gol, como uma folha seca ao cair no outono.
O poeta Nelson Cavaquinho compôs uma de suas mais belas músicas em homenagem à Estação Primeira de Mangueira.



Quando eu piso em folhas secas
Caídas de uma mangueira
Penso na minha escola
E nos poetas da minha estação primeira
Não sei quantas vezes
Subi o morro cantando
Sempre o sol me queimando
E assim vou me acabando
Quando o tempo avisar
Que eu não posso mais cantar
Sei que vou sentir saudade
Ao lado do meu violão
E da minha mocidade…
(Para ouvir Nelson Cavaquinho e Cartola cantando Folhas Secas, clique aqui)
A metáfora da vida passando e das folhas caindo pelo chão sendo comparadas ao subir o morro e cantar com os sambistas da Mangueira é belíssima. Mesmo que o sol acabasse com a existência do poeta, tudo teria valido a pena por ele ter cantado a sua Mangueira. Sobraria a saudade da juventude e a vontade de voltar a cantar na escola, mas a vida já teria se esvaído. O nome da música existencialista e tomada de dor é Folhas Secas.


O famoso gol contra o Peru

Folha Seca também é o apelido da magistral falta inventada pela dor de Didi. Nas eliminatórias da Copa de 1958, foi Didi quem permitiu o Brasil mudar sua história. Numa partida difícil no Maracanã contra o Peru, Didi cobra a falta e faz o gol salvador que colocou o Brasil na Copa do Mundo de 1958.
A pelota foi chutada pelos três dedos do Príncipe Etíope, subiu aos céus, passou longe dos nove jogadores que se espremiam na barreira peruana, depois desceu com uma velocidade impressionante de forma repentina, deixando o goleiro do pais adversário anestesiado. Didi acabara de inventar a falta em “Folha Seca”.



A flor e a náusea
Cada dia mais, os versos de Nelson Cavaquinho são representativos do Brasil. Num país racista, chauvinista, com memória fraca e inspiração fascista, o esquecimento dos dois heróis – um do samba e outro do futebol, nossas maiores contribuições culturais à humanidade -, não é coincidência, é sim uma estratégia do poder para anestesiar o povo. Um país que se vende feliz em meio a tanto sofrimento, então com a licença de Nelson Cavaquinho:
Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor
Hoje pra você eu sou espinho
Espinho não machuca a flor…
Assista a Tv Cultura nos áureos tempos com Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito cantando “A flor e o espinho”


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