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Portuguesa Santista versus Apartheid




FREDERICO MORIARTY – Em 1917, Santos possuía o maior porto do Brasil. Havia muito comunista por lá também. A greve geral de 1917 começou ali. A cidade era um canteiro de obras e aos poucos o futebol tornava-se popular. Dois times se destacavam: o Hespanha (atual Jabaquara) e o lendário Santos Foot Ball Club. Naquele ano, mais precisamente em 20 de novembro, os imigrantes lusitanos fundariam a Associação Atlética Portuguesa.
Para não confundir com o time da capital (nascido três anos depois), a Briosa ficou conhecida como Portuguesa Santista. Todo homem tem seu preço; todo pequeno clube se agiganta vez ou outra. A Portuguesa da Baixada jamais ganhou um título digno de nota. Disputou o campeonato Paulista por 51 vezes e por quatro vezes foi a terceira colocada (na última delas dirigida pelo ex-craque santista, Pepe, em 2003).
Revelou alguns bons jogadores como Tim, primeiro jogador natural de Santos a disputar uma Copa do Mundo, a de 1938; Samarone, que fez história no Fluminense; Pagão, um dos mais habilidosos atacantes de nosso futebol, parceiro de Pelé no imbatível Santos dos anos 60; e, por último, Neymar.



A Briosa na África
O pequeno estádio para 6 mil pessoas foi o primeiro a ter cobertura de concreto no Brasil, mas ficou décadas sem iluminação artificial. Ulrico Mursa foi um dos engenheiros que construiu o Porto de Santos. Até hoje é a casa da Briosa. Os times de futebol brasileiro costumam ter mascotes como o Peixe (Santos), o Vovô (São Paulo), o Mosqueteiro (Corinthians), o Periquito (Palmeiras), a Raposa (Cruzeiro) ou o Urubu (Flamengo). No rubro-verde das praias paulistas é uma simpática moça portuguesa, a Briosa.



Há exatos 60 anos, a Portuguesa Santista aproveitando-se da fama da cidade de Pelé e do título mundial brasileiro do ano anterior na Suécia, engata uma excursão ao continente africano. Foram 13 jogos por Angola, Moçambique, Congo e Senegal. Treze vitórias e várias por goleada. Em 13 de maio (dia da nossa Abolição), o time enfrentaria a Seleção da Cidade do Cabo, na África do Sul.
No vestiário vem a ordem do cônsul sul-africano: os titulares Nenê, Bota e Guilherme não poderiam entrar em campo. O Apartheid não queria negros em gramados. No mês anterior, o time de basquete da S.E.Palmeiras também havia excursionado por terras sul-africanas. Para evitar o confronto, o pivô Walter, titular do time paulista, foi cortado. Não jogava mal, simplesmente era negro. Talvez os dirigentes palestrinos tivessem sentindo saudades do Duce, o ditador Benito Amilcare Andrea Mussolini.


Bota, o terceiro negro da lusa Santista

Apartheid
Desde a segunda metade do século XIX, a África transformou-se numa colcha de retalhos dos interesses imperialistas europeus. E África do Sul, em particular, virou palco de disputas sangrentas entre ingleses e holandeses. seja por sua posição estratégica entre os Oceanos Atlântico e Índico, seja por ser desde o século XVI uma das maiores rotas comerciais oceânicas. Ou ainda por se tratar de um dos mais ricos subsolos do mundo.
Claro que nas guerras imperialistas o sangue que corria era o do negro africano. Em 1910 são aprovadas as primeiras leis segregacionistas e logo depois surge o Conselho Nacional Africano (CNA), formado por negros em busca da liberdade e autonomia. As minas de ouro, diamantes e ferro deixaram ricos os dois colonizadores.


Revista Time (1952): Daniel François Malan, criador do Apartheid, hoje no panteão dos grandes assassinos da história ao lado de Hitler

Pregando a exclusão política dos negros e prometendo aprovar uma legislação excludente contra a comunidade negra, o líder do Partido Nacional, Daniel François Malan, um pastor presbiteriano que adorava falar de Deus e da Bíblia, se alia ao Partido Afrikaner, de inspiração nazista. Ele ganha as eleições de 1949 e cumpre o prometido: decreta um regime de segregação racial, ou seja, leis que autorizavam o racismo.
Negros deviam (por lei) ganhar 8 vezes menos do que brancos. Negras só poderiam estudar até a 4° série. A comunidade negra não podia entrar em clubes, cinemas, teatros, campos de futebol e andar livremente pelas praças. Todos os negros deveriam andar com uma carteira-passe, uma espécie de salvo-conduto para um presidiário. Calçadas de terra para os “niggers” e de piso cimentado para os brancos.
Casamentos interraciais? Jamais! Adicione um estado policial, torturas, prisões arbitrárias, assassinatos, massacres como o de Sharpeville, em 1960. Um dos mais cruéis e arbitrários regimes da história.



Em 1961, cansado das prisões e das derrotas políticas, o maior líder negro do país funda o Umkhanto We Sizwe (Lança da Nação), o braço armado da CNA. Contra a atrocidade do Apartheid, a força de resistência revolucionária. Mandela é preso em 1964, dois anos após a instalação dos Bantustoes (o estágio final da segregação racial, com a criação de vários países fictícios em que os negros foram levados à força e obrigados a viver em condições precárias com suas famílias, além de terem de se deslocar dezenas de quilômetros todos os dias pra trabalhar nas cidades dos brancos).
Mandela foi sentenciado inicialmente à pena de morte, em 1965, mas a seguir, a punição passou a ser de prisão perpétua. Por quase 30 anos, com apoio dos EUA, da Inglaterra e do Brasil, o Apartheid seguiu livre de problemas externos. Fórmula 1, ATP de Johannesburgo, times de futebol, vôlei, basquete, quase ninguém boicotava o regime racista sul-africano (com exceção das comunistas Cuba, China e URSS).
Na economia, os tratados comerciais com o país nunca cessaram. Bastou o fim do socialismo e o boicote americano em 1989 para o presidente sul-africano Frederick Le Klerk soltar Mandela em 1991 e iniciar a transição para o regime democrático que vigora no país há 25 anos.


Nelson Mandela (Fotos: Arquivo)

Gigante pela própria natureza
No vestiário da Lusa Santista, a indignação era total. Os jogadores começaram a discutir com os dirigentes sul-africanos. Cadeiras voaram. A decisão foi unânime na delegação brasileira: “Ou jogam todos ou não joga ninguém!”
E assim foi. A Portuguesa Santista entrou pra história como a primeira agremiação esportiva a boicotar o Apartheid e enfrentar o racismo. Foram embora da terra das Tormentas, não sem antes receber um telegrama parabenizando a atitude (literalmente) briosa. “Hoje, vocês derrotaram o maior adversário: o racismo”. A assinatura era de um tal de Nelson Mandela. Partiram viagem, ganharam mais dois jogos em Cabo Verde.
Invictos, receberam a “Fita Azul”, honraria dada pela CBD para equipes brasileiras com campanhas expressivas no exterior. Pelas rádios o presidente Juscelino Kubitschek fez um pronunciamento inflamado e laudatório aos “heróis brasileiros e defensores da democracia”. Quando o navio com a delegação brasileira aportou em Santos no 28 de Maio de 1959, a praia estava tomada por centenas de milhares de pessoas que aplaudiam os gigantes do futebol brasileiro. A Portuguesa Santista derrotara o Apartheid.


A chegada triunfante da heroica delegação da Briosa no porto de Santos

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