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África: do Imperialismo ao Filme do Menino que Descobriu o Vento


FREDERICO  MORIARTY
“Doctor Livingstone, I presume?”    Henry Morton Stanley procurava pelo descobridor da África havia meses. Três anos antes, David Livingstone — explorador e missionário inglês —, partira em sua penúltima missão: adentrar o lago Niassa. Ele já havia descoberto a nascente do Nilo, o lago Victória e a nascente do rio Congo. Sua equipe de apoio (formada por muitos africanos em estado de semiescravidão) o abandonara num povoado da Tanzânia, próximo ao lago Tanganica. Em Europa era dado como morto. Stanley não desistiu e finalmente encontrou o macérrimo e maltrapilho Livingstone soltando a sarcástica frase acima. Anos depois, Stanley transforma-se no principal geógrafo-descobridor do genocida Leopoldo II, rei da Bélgica.       O lago Niassa deixou de lado o nome de batismo da Europa imperialista. Malawi é o nome africano. Lago do Sol Nascente. O país a oeste do lago tem o mesmo nome. Estava encravado na antiga Rodésia. Um dos maiores símbolos do que foi o imperialismo europeu. Cecil Rhodes foi um empresário bem-sucedido inglês. Anexava terras com dinheiro, tráfico de influência e muita violência. Certa vez disse “se eu pudesse anexaria os planetas”. Quase um terço do continente lhe pertenceu. As terras (uma área maior do que Alemanha e França juntas) no centro-sul da África decidiram por homenageá-lo: Rodésia, um país com o nome de seu dono.
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Malawi foi parte dessa história de tragédia e extermínio. Sem minérios, apenas cercado por uma imensa floresta tropical de um lado e um grande lago tectônico de outro, o país se especializou em produzir tabaco. Paupérrimo até os dias atuais, tem uma renda per capita que não chega a 500 dólares. Mais de 70% da população não tem energia elétrica. A fome é crônica nos ciclos de seca, como os de 2001 a 2005.                                                 O menino que descobriu o vento (2019), filme lançado no ínício de março e disponível para o público na Nétifliquis, é uma daquelas histórias de superação que levam a gente a acreditar em como somos privilegiados, mesmo não tendo quase nada. A miséria absoluta é um destruidor de vidas, um ceifador de almas, um mundo descalibrado.
William Kamkwamba é um menino  de 13 anos que segue os passos educacionais da irmã, a qual conseguiu se formar na escola particular do pequeno vilarejo e aguarda apenas uma bolsa para ir à faculdade em 2001.
O uniforme novo que ele ganha dos pais é o prenúncio da tragédia que virá. William (Maxwell Simba) desde o início dos estudos demonstra uma grande aptidão por ciências. O professor o ajuda, percebendo o talento do menino mas também porque namorava a irmã mais velha dele.
Vem a seca e as eleições democráticas controladas por um ditador. Os homens e mulheres de Kasungu decidem vender a floresta em troca de mantimentos. Plantar era inseguro, afinal eles não possuíam abastecimento de água, muito menos energia elétrica. O pai de William, Trywell (interpretado por Chiwetel Ejjofor, ator de Doze anos de escravidão, que também dirigiu O menino que descobriu o vento) e a mãe Agnes (Aissa Maiga) são contrários, mas a comunidade vence. Aos poucos a fome toma conta de todos. A plantação de Trywell (ironicamente “Bem Tentar”) é minúscula. William é expulso da escola por falta de pagamento de mensalidade. A cena do diretor tocando o dedicado menino da instituição é dolorosa.
Ajudado pelo professor de ciências e pela bibliotecária, William estuda sozinho na biblioteca com livros doados pelos Estados Unidos. Seu interesse maior é a energia. Mais do que isso, buscar uma fonte energética renovável. O garoto descobre nas suas pesquisas (sem gugou ou uiquipédia) a energia eólica. Decide construir um pequeno gerador eólico para bombear água ao vilarejo dos pais. Tudo com a força de vontade, o conhecimento e muita sucata.
Enfrentando o ceticismo e a ignorância educacional e científica do pai, William desenvolve todo o projeto, mas para encerrar a miniusina necessitava do único meio de locomoção da família, uma bicicleta.
O conflito entre pai e filho. Ciência e tradição. Razão e religião são explicitados nas cenas finais. William vence. O gerador traz esperança aos miseráveis de Malawi. O menino torna-se famoso na capital, ganha uma bolsa, vai estudar Engenharia Ambiental na África do Sul.
O poder da educação e da perseverança contra a opressão e a miséria. Mas a África é muito maior do que William. A permanência da exploração e o caos econômico não despareceram com a pequena usina eólica de Kasungu.
O filme é baseado no livro homônimo de William Kamkwamba, lançado em 2009. Um ano depois, em entrevista ao site Huffpost, ele conta que até hoje sua mãe, Agnes, tem de buscar lenha para sobreviver. O país ainda não tem energia elétrica para todos, afinal as redes elétricas não chegam às áreas mais pobres. Segundo, pois a devastação florestal, necessária para a expansão das plantações de tabaco, provoca assoreamento dos rios e entupimento da barragem da única hidroelétrica do país. William se dá conta de que a mãe anda cerca de 1.050 horas (durante quatro meses) até encontrar lenha para a família que ainda vive no vilarejo.
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O sorriso contagiante do engenheiro, as experiências com biogás, fornos e cisternas aquecidas com energia solar e sua organização não governamental que financia projetos ambientalmente corretos são um mero grão de areia contra o vento sórdido do capitalismo.
(Este texto foi inspirado na crítica da jornalista e cinéfila Lucia Helena, do blog Todas as Telas. Clique aqui e leia também a visão dela sobre o filme).
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